23/11/2023 - Eduarda Guerra - Advogada do escritório Telino & Barros Advogados Associados
A
mais recente reforma da Lei de Recuperação Judicial e Falência – Lei
11.101/2005 – trouxe alterações controversas do ponto de vista constitucional,
mas que possibilitaram as Cooperativas médicas operadoras de plano de
assistência à saúde se sujeitarem às benesses oriundas da legislação
recuperacional, o que antes não era possível.
O
artigo 1º da Lei 11.101/2005 entende como devedora as sociedades empresárias ou
o empresário individual, o que, consequentemente, afasta as sociedades simples
dessa permissão legal. A sociedade simples, por sua vez, diferencia-se da
sociedade empresarial em razão do seu objeto, pois apesar de exercerem uma
atividade econômica, não o faz com o fim mercantil, uma vez que o objeto é destinado
a atividades intelectuais e cooperativas.
O
Código Civil dispõe expressamente que as cooperativas são sociedades simples e,
por consequência lógica, não podem sujeitar-se à recuperação judicial ou ter
sua falência decretada.
E
o que de fato é uma cooperativa? É um contrato firmado entre a sociedade
cooperativa e seus cooperados que se obrigam a contribuir com bens e serviços
para o exercício de uma atividade econômica, de proveito comum, sem objetivo de
lucro.
Feitas
essas breves explicações, passemos à análise da lei recuperacional. Uma das
vedações da legislação é a proibição das sociedades operadoras de planos de
saúde não se sujeitarem à recuperação judicial ou terem a falência decretada.
Isso é, ainda que essas sociedades tenham a natureza empresarial, elas não
podem valer-se da legislação recuperacional e falimentar.
No
entanto, recentemente, com a reforma implementada pela lei 14.112/2020, uma
novidade revelou a possibilidade de as cooperativas operadoras de planos de
saúde pedirem recuperação judicial ou terem sua falência decretada.
Nesse
ponto, denota-se uma certa confusão da lei: cooperativas não podem pedir
recuperação judicial ou terem a falência decretada ao passo que sociedades
operadoras de planos de saúde sujeitam-se a mesma proibição. No entanto, se for
uma cooperativa operadora de plano de saúde, o legislador passou a conceder
essa prerrogativa.
Conforme
já salientado, as cooperativas propriamente ditas, por não serem sociedades
empresárias, não poderiam pedir recuperação judicial ou falência. Mas, se essa
mesma cooperativa for operadora de plano de saúde, ela se vale de tal
prerrogativa. Uma incongruência legislativa que salta aos olhos para o
benefício destinado especificamente para essa natureza de sociedade.
Não
obstante, o nascedouro dessa previsão legal se deu através de uma
inconstitucionalidade formal e, para fins de melhor elucidação, é preciso fazer
uma retrospectiva histórica ao momento em que se deu a aprovação legislativa
desse dispositivo.
O
projeto de lei para reforma da
Lei 11.101/05 previa, inicialmente, que os contratos e as obrigações
decorrentes dos atos cooperados praticados pelas sociedades cooperativas com
seus cooperados não se sujeitariam aos efeitos da recuperação judicial: Art.
6º, § 13. Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e
obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades
cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de
dezembro de 1971.
Isso
explica a situação de um cooperado, produtor rural, por exemplo, que decide
requerer a recuperação judicial. Nesse caso, o produtor rural cooperado não
poderá sujeitar os contratos e obrigações firmados com a cooperativa aos
efeitos da recuperação, ou seja, o cooperado continua obrigado perante à
cooperativa.
Esse
texto inicial foi aprovado pela Câmara dos Deputados e seguiu para aprovação
pelo Senado Federal. A Casa Revisora, por sua vez, decidiu inserir a expressão
adverbial “consequentemente” após essa previsão e a informação de que as
sociedades operadoras de plano de saúde, quando forem cooperativa médica,
estariam sujeitas à recuperação judicial, de modo que o dispositivo passou a
ter a seguinte redação: Art. 6º, § 13. Não se sujeitam aos efeitos da
recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos
cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na
forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de
dezembro de 1971,
consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do
art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for
cooperativa médica.
Ocorre,
porém, que não se está diante de uma relação de causa-consequência. O fato de o
cooperado não poder submeter suas dívidas com a cooperativa ao procedimento
recuperacional, não gera, como consequência, a possibilidade de as cooperativas
operadoras de planos de saúde pedirem recuperação judicial.
Não
obstante, para justificar essa inclusão e evitar que o projeto retornasse à
Câmara dos Deputados, o Senado sinalizou que seria apenas uma emenda de
redação, e não uma alteração do dispositivo – a nominada emenda aditiva[1][2] -,
e, portanto, não precisaria retornar à Câmara dos Deputados.
Acerca
do imbróglio gerado pelo artifício legislativo em comento, o Doutrinador Manoel
Justino teceu o seguinte esclarecimento[3]:
Tanta incoerência, embora não
tenha justificativa, tem explicação. O Senado Federal entendeu que deveria
submeter-se à pressão das cooperativas médicas e acresceu ao texto que tinha
recebido da Câmara dos Deputados este “consequentemente” e tudo o que veio
após. Ou seja, alterou o dispositivo e deveria então o projeto retornar à
Câmara para nova votação. Para evitar esse retorno e atender também à urgência
que se entendia como necessária, fez essa alteração, não a admitindo como
alteração, dizendo então (sem qualquer base na realidade) que se tratava de
simples emenda de redação. Ou seja, tratando-se de emenda de redação (o que não
é), o projeto foi aprovado como se não tivesse sofrido alteração, de acordo com
o processo legislativo. Enfim, é assim que se fazem as leis neste momento da
quadra histórica do País.
A
despeito dessa previsão legal e todo o debate por sua inconstitucionalidade,
recentemente o Ex-Procurador Geral da República (PGR), Augusto Aras, passou a
questionar a inclusão das cooperativas médicas no regime de recuperação
judicial, através da propositura de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade
(ADI) 7442, no Supremo Tribunal Federal. Segundo Aras:
“Verifica-se, desse modo, que a
expressão ‘consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do
art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for
cooperativa médica’, incluída no art. 6º, § 13, da Lei 11.101/2005 pela Lei
14.112/2020, não foi discutida nem aprovada pela Câmara dos Deputados,
contrariando, assim, o art. 65, parágrafo único, da Carta da República”.
Ao
final da ADI, o Ex-PGR pugna pela declaração de inconstitucionalidade formal da
parte final do dispositivo comentado.
Não
obstante essa inconstitucionalidade formal, fato é que, atualmente, as
cooperativas operadoras de plano de saúde podem pedir recuperação judicial ou
ter suas falências decretadas e isso já tem sido objeto de pedido por essas
cooperativas de plano de saúde, como é o caso da Cooperativa Unimed Norte e
Nordeste.
E
a partir dessa perspectiva, abre-se margem ao debate para possibilidade de
ampliação do rol das pessoas jurídicas que podem sujeitar-se as benesses da lei,
notadamente àquelas que já se equiparam ao que se entende como “empresa” por
possuírem atividade de circulação de bens e serviços organizadas e inseridas na
economia de mercado, como é o caso de algumas cooperativas.
Não
se pode afastar o objetivo precípuo da legislação recuperacional que é o da
preservação da atividade econômica em razão da função social, de modo que
ampliar esse rol de legitimados a se beneficiar das prerrogativas da lei,
demonstra-se como uma solução para que se cumpra o verdadeiro espírito da lei, o
soerguimento empresarial.
Obviamente
que essas inovações devem respeitar o processo legislativo para evitar
inseguranças jurídicas. Assim, resta saber se o STF vai declarar a
inconstitucionalidade desse dispositivo e se retornaremos ao status quo ante
de que as cooperativas, independente do objeto, continuam a não se
sujeitarem às benesses da lei recuperacional e falimentar.
[1] O art. 118, §
6º, do Regimento Interno da Câmara dos Deputados, conceitua a emenda aditiva
como aquela que se acrescenta a outra proposição.
[2] Art. 246. As proposições serão numeradas de acordo com as seguintes normas: II – as emendas serão numeradas, em cada turno, pela ordem dos artigos da proposição emendada, guardada a sequência determinada pela sua natureza, a saber: supressivas, substitutivas, modificativas e aditivas; (…).
[3] Lei de recuperação de empresas e falência [livro eletrônico] : Lei 11.101/2005 : comentada artigo por artigo / Manoel Justino Bezerra Filho, Adriano Ribeiro Lyra Bezerra, Eronides A. Rodrigues dos Santos. -- 7. ed. -- São Paulo : Thomson Reuters Brasil, 2022.
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